Lugar sem comportamento é o coração...


"Lugar sem comportamento é o coração.
Ando em vias de ser compartilhado.
Ajeito as nuvens no olho.
A luz das horas me desproporciona.
Sou qualquer coisa judiada de ventos.
Meu fanal é um poente com andorinhas.
Desenvolve meu ser até encostar na pedra.
Repousa uma garoa sobre a noite.
Acieto no meu fado o escurecer.
No fim da treva uma coruja entrava."


"As coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis:
Elas desejam ser olhadas de azul -
Que nem uma criança que voce olha de ave".

"No Tratado das Grandezas do Infimo estava escrito;
Poesia é quando a tarde está competente para dálias.
É quando
Ao lado de um pardal o dia dorme antes.
Quando o home faz a sua primeira lagartixa.
È quando um trevo assume a noite
E um sapo engole as auroras."

"As coisas que não tem nome são as mais pronunciadas pelas crianças"

"Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:
a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca
b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas tem devoção por túmulos
d) Se um home que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre dois jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre dois lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.
etc
etc
etc
Desaprender oito horas por dia ensina os principios."

"Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas
leituras não era a beleza das frases, mas a doença delas.
Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor, esse gosto esquisito.
Eu pensava que fosse um sujeito escaleno.
- Gostar de fazer defeitos na frase é muito saudável, o padre me disse.
Ele fez um limpamento em meus receios.
O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença, pode muito
que você carregue para o resto da vida um certo gosto por nadas...
E se riu.
Voce não é de brugre? - ele continuou.
Que sim, eu respondi.
Veja que bugre só pega ppor desvios, não anda em estradas -
Pois é nos desvios que encontra as melhores surpresas e os ariticuns marduros.
Há que apenas saber errar bem o seu idioma.
Esse Padre Ezequiel foi meu primeiro professor de agramática."

"Bernardo é quase árvore.
Silêncio dele é tão alto que os passarinhos ouvem de longe.
E vêm pousar em seu ombro.
Seu olho renova as tardes.
Guarda num velho baú seus instrumentos de trabalho:
1 abridor de amanhecer
1 prego que farfalha
1 encolherdor de riso - e
1 esticador de horizontes.
(Bernardo consegue esticar o horizonte usando trêsfios de teias de aranha. A coisa fica bem esticada.)
Bernardo desregula a natureza:
Seu olho aumenta o poenta.
(Pode um homem enriquecer a natureza com a sua incompletude?)

Poemas de Manoel de Barros - O livro das Ignorãças, 1993


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